Bancos, relógios e chocolates. Montanha, neve e queijos. Serão estas, talvez, as principais imagens que nos assomam quando pensamos na Suíça. Mas este é também um país vinhateiro de tradições seculares, onde a altitude tem um papel determinante e a palavra mágica é… Chasselas.
É certo que a produção de vinhos suíços não é tão reconhecida face aos pares europeus, sobretudo porque cerca de 99% dos vinhos que o país elabora são bebidos localmente (a Suíça ainda importa cerca de dois terços do que consome). O consumo de vinho naquele país não é despiciendo – 33 litros per capita, ocupando a quarta posição no topo dos maiores consumidores mundiais.
Mas o que nos interessa aqui são os vinhos suíços, esses desconhecidos. Vinhos brancos, alicerçados na casta Chasselas, e tintos de Pinot Noir, são predominantes. A onipresente Chasselas (pelo menos na Suíça francesa) responde por 19,7% do encepamento do país (3.734 ha de um total que ronda 15.000 ha) e produz vinhos frutados, de final levemente doce e, nos melhores exemplares, de franca acidez e mineralidade, capaz de envelhecer graciosamente, como comprovámos em alguns exemplares mais datados, entre os quais vinhos com quase três décadas.
Variedades como as tintas Gamay, Gamaret e outras menos disseminadas, como a Mala (um híbrido de Gamaret) dão origem a vinhos sui generis, de identidade bem vincada, num nível diverso dos vinhos produzidos com base nas castas internacionais.
Num país em que os Alpes formam cerca de dois terços do território, intervalado pelo Plateau (planalto, onde se localizam as principais cidades do país) e a cordilheira do Jura, é por demais evidente que a altitude joga um papel determinante nas vinhas, em grande parte dispostas em patamares e terraços, gozando de temperaturas médias entre os 9ºC e 12ºC. Dada a configuração orográfica e o preço da mão-de-obra (produtores afirmaram que pagam cerca de 15 euros/hora a vindimadores de origem sobretudo portuguesa e polaca, mas outro relatos apontam para valores que rondam 40 a 45 euros/hora), os custos de produção são elevadíssimos, razão pela qual os vinhos suíços (tal como quase tudo no país) são caros – os vinhos entram no mercado a preços nunca inferiores a 12/13 euros.
A Suíça vinhateira é formada por seis regiões, onde se impõe o modelo das AOC à francesa. Valais, no coração dos Alpes, Vaud, nas margens do rio Geneva ou Leman, Jura e os Três Lagos, Ticino no sul (onde os melhores Merlot equiparam-se aos Supertoscanos) e uma forte divisão de regiões na Suíça germânica. Nem sempre foi assim: este rigor foi sendo imposto gradualmente à custa do loteamento de vinhos suíços com vinho a granel importado. A chaptalização é uma ferramenta muitas vezes necessária e as fermentações maloláticas são prática comum para evitar o tartárico considerado em excesso (frequentemente em detrimento da sensação de frescor que a acidez providencia).
Muros, lagos e açúcares
Por ocasião da mais recente edição do Concurso Mundial de Bruxelas, que teve lugar em Aigle, a GULA teve a oportunidade de visitar algumas regiões e produtores nas regiões do Vaud e Jura Três Lagos.
No Vaud, as vinhas são temperadas pela proximidade da grande massa de água que constitui o lago Geneva (ou Leman). Aqui, o Chasselas é produto do alto rendimento da vinha (acima de 100 hl por ha) e o terroir ganha máxima expressão em Lavaux, com os seus altos muros classificados Património Mundial da Humanidade e os preços quase obscenos dos vinhos. Aqui, pontificam os Grand Cru Dezaley (65ha) e Calamin (17 ha). A casta Chasselas apresenta nervo e tensão gloriosos, com expressão distinta das restantes regiões, fruto das fontes de exposição solar: a que provém do próprio sol, a que reflete do amplo espelho de água do lago Geneva e aquela que reverbera dos 30 quilómetros de muros construídos de Lavaux. Estes têm origem na presença cisterciense, muito marcante e que continua a dominar a estrutura da propriedade. É, ainda hoje, a maior região de vinha contínua na Suíça, num total de 780 ha no conjunto da “Appelation”.
Ainda no Vaud, La Côte forma um arco que percorre desde oeste de Lausanne até à cidade de Geneva. Na comuna de Mont-sur-Rolle, distrito de Nyon, destacam-se os vinhos nascidos dos 260 ha de vinhas de produtores como Domaine de Autecour, Domaine de Beausoleil, Chateau de Mont ou Domaine de Vieux Toit. A capacidade de envelhecimento destes vinhos consegue ser notável, como constatámos com um Domaine de Autecour Reserva 1990 (engarrafado então com rolha de cortiça, ao contrário das atuais screwcaps…), cheio de nervo e frescura, onde a acidez, ao contrário do tradicional, havia ganho aos açúcares a batalha pela supremacia sensorial.
Por sua vez, as vinhas voltadas a sul nas margens sobre o lago Neuchâtel, dominadas por Chasselas e Pinot Noir, proporcionam vinhos de maior frescura, muitas vezes com um leve apontamento de gás propiciado pelo contacto “sur lies”. De forma similar, as vinhas cultivadas a norte do lago Bienne oferecem vinhos mais finos e elegantes, com base nas mesmas variedades, mas onde a introdução de outras, como Sauvignon Blanc ou Pinot Grigio (como testemunhámos nas pequenas parcelas em Ligerz), aporta uma nota de saudável diversidade.
A região definida pelos três lagos Neuchâtel, Bienne e Morat compreende 975 hectares de vinhedos, sendo a menor em termos de produção (5%). Aqui a principal variedade é a Pinot Noir que, para além dos tintos frescos e leves, é usada na produção do rosé conhecido como Oeil de Perdrix.
Em Ligerz, jovens produtores como Christian Dexl, proprietário da Keller am See, juntam à tradição local uma perspetiva mais aberta obtida em outras paragens – no caso, Austrália. Este produtor biodinâmico da AOC Bielersee (mas não radical nem natural, pois usa SO2, ao contrário de outros que desenvolvem a prática na região há cerca de 30 anos), cultiva 2,5 ha (a média local ronda 2 a 6 ha), tendo iniciado a sua produção em 2016. Com uma média de produção de 10 a 12.000 garrafas/ano, obtém das vinhas (algumas com idades entre 25 a 30 anos) um rendimento que oscila em torno dos 6000 kgs/ha. O equilíbrio entre acidez, doçura e tanino é notório: vinificado com engaços, este produtor recusa chaptalizar – vantagem de ser produtor biológico, pois retira mais açúcares das uvas – e os vinhos atingem níveis de acidez entre 6 a 7 gr./l. A mineralidade é outra nota destes vinhos que nascem em solos calcários e pouco profundos, que predominam na região desde Geneve até Ligerz. Novas variedades, como Sauvignon Blanc e Pinot Gris, juntam-se a outras como Grand Noir ou Syrah e compõem um portefólio rico, apesar de curto, a que acrescenta um espumante bruto natural produzido em método artesanal.
Numa outra dimensão, em Môitiers (Neuchâtel), as Caves Mauler produzem anualmente cerca de 600.000 garrafas de espumante, tendo em estágio cerca de 2,5 milhões de garrafas. Com 20 referências no total, os espumantes são produzidos “à la Champagne”, entre brut nature, bem interessantes meio doce (com 1% de licor de expedição) e doce. As castas predominantes são Pinot Noir, Chardonnay e algum Colombay e usam leveduras adquiridas na região de Champanhe. Nesta casa, fundada em 1829 e atualmente na quinta geração de proprietários, pudemos provar um Cuvée Brut Nature 2012, um Cuvée Louis Edouard Mauler Brut Pinot Noir e Chardonnay de 2011 e um Cuvée Excellence Brut 2013, que têm como nota transversal as notas de pastelaria, flores brancas e amplitude de boca notável.
Mas os vinhos suíços não ficam por aqui, como constatamos através da uma pequena prova de Merlots de Ticino. Muito terroirs num só país demonstram que a diversidade é sempre uma mais-valia. Nem sempre conhecida de todos. Está na hora de desvendar este segredo.
A visitar:
A casa da fada verde
Em Val-de-Travers, onde nasceu o Sr. Pernod (o primeiro exilado fiscal suíço, que partiu para o sul de França para fugir à elevada carga fiscal) e viveu por três anos Jean-Jacques Rousseau, onde surgiram casas relojoeiras como Chopard e Piaget, a Maison de l’Absinthe, instalada na antiga sede da Polícia Municipal, conta a história da bebida conhecida como “Fada Verde”.
Proibido entre 1910 e 2005, o absinto esteve sempre conotado com uma bebida proibida, demencial e associada ao mundo das artes. Neste riquíssimo museu podemos conhecer um pouco mais sobre o absinto, como é produzido, cozinhar “soufflé de fée verte” (que François Mitterrand provou numa visita de Estado em 1983, em plena “lei seca”, e valeu três anos de prisão ao chefe prevaricador) e provar inúmeros exemplares desta bebida, que oscila entre 52 e 78% de volume alcoólico e cuja experiência resulta do equilíbrio entre anis, açúcar e álcool, água cristalina e os óleos essenciais das plantas que lhe dão origem.
Maison de l’Absinthe
Grande Rue 10, 2112 Môtiers
T. +41 (0)32 860 10 00
W. www.maison-absinthe.ch
Rousseau a escapar pelo alçapão
Famosa península do lago Bielersee, esta St. Peter Island é conhecida pela sua paz e tranquilidade. No que é hoje o hotel St Peterinsel residia um priorado estabelecido pela ordem de Cluny, no século XII, e onde Rousseau ficou entre Setembro e Outubro de 1756. Ainda hoje é possível visitar os seus aposentos, que incluíam um alçapão por onde o filósofo escapava sempre que recebia visitantes mais inoportunos… Hoje é propriedade da Bourgeoisie de Berna e alberga um hotel três estrelas.
Hotel St Peterinsel
Heidenweg 26, 3235 Erlach
T. +41 32 338 11 14
W. www.st-petersinsel.com
Solothurn
Cidade que fica marcada pela única passagem que liga Itália a partir dos Alpes, ficou famosa pela sua fixação numerológica (poucas edificações, igrejas, fontes ou bicas de água não terão o número 11 como referência ). Cidade católica fundada em 1032 (séc. XI), tornou-se o 11º cantão, com 11 governantes, 11 igrejas e capelas, 11 fontes e 11 pontes. Tem até a peculiaridade de um dos muitos relógios públicos (não sabemos de se 11…) dar apenas as… 11 horas. Cidade barroca, alberga belíssimos monumentos históricos e construções aristocráticas. A conhecer, a Catedral de St. Urs, cuja fachada foi doada por Luís XIV, ou o Hotel La Couronne, onde à passagem de Napoleão, os cozinheiros afadigaram-se durante três dias para preparar a visita do Imperador que, quando chegou… pediu apenas um copo de água. Provar o bolo de Solothurn na pastelaria Suteria é obrigatório.
Biel/Bienne
Se Solothurn é a capital do barroco, Biel tem um passado ligado sobretudo à indústria. Foi aqui que se fixou a Rolex e é onde está o Centro de Engenharia de Precisão. A cidade antiga é um portento e, curiosamente, ao contrário do que aconteceu em outras cidades, manteve-se uma cidade viva, habitada, onde os locais trabalham e os edifícios são reabilitados de acordo com as especificidades originais.
La Chaux-de-Fonds
Situada no cantão de Neuchâtel, no sopé das montanhas do Jura, La Chaux-de-Fonds foi fundada em 1656 e tem no setor relojoeiro e tecnologia parte da sua reputação, fazendo mesmo parte da lista de património da UNESCO pelo seu urbanismo relojoeiro. Aqui nasceram marcas como Pierre Jaquet Droz, Greubel Forsey ou Omega e a cidade foi berço de ilustres como Le Corbusier e Louis Chevrolet. Situada a 1000 metros de altitude, goza do epíteto de cidade mais alta da Europa.
Como viajar na Suíça:
O trem é o meio de transporte universal, mais prático e eficiente. A reconhecida pontualidade suíça não é uma palavra vã: aqui não há receio de atrasos nem falha nas conexões. A companhia férrea suíça disponibiliza um passe global que permite viajar em toda a rede do país, em diversas modalidades, com preços que oscilam entre 232 CHF (3 dias em 2ª classe) a 810 CHF (15 dias em primeira classe). O passe inclui viagens de ônibus e barco.
W. MySwitzerland.com/rail