Assédio

Fotografia: reprodução da internet
Alexandre Lalas

Alexandre Lalas

A Court of Master Sommeliers dos Estados Unidos (CMS-A), uma das organizações de vinho mais proeminentes e importantes do mundo, parece viver um inferno astral que não acaba. Se há cerca de dois anos o problema foram trapaças na admissão de novos membros, neste ano foi acusada de racismo e agora teve vários membros acusados de assédio sexual. As denúncias reveladas em reportagens do New York Times já forçaram a renúncia do presidente da CMS-A e a suspensão de onze Masters Sommeliers. E a renúncia de todo o conselho da organização é esperada para os próximos dias.

 

Os casos de assédio sexual pareciam fazer parte da rotina da organização, segundo reportagem do NYT. Nada menos que 21 mulheres afirmaram terem sofrido algum tipo de assédio de membros da CMS-A. Na matéria, seis masters sommeliers eram acusados de cometer os abusos, que iam de apalpamentos até propostas explícitas de troca de sexo por favores profissionais e mesmo estupro. A reportagem gerou uma linha direta onde mais mulheres apareceram para denunciar os abusos que sofreram levando à acusação de outros cinco membros da organização. Para apurar todas as denúncias, foi designado um investigador independente.

 

Um dos alvos principais dos relatos foi Geoff Kruth, presidente da GuildSomm, um grupo educacional e de networking afiliado a CMS-A. Desde que a matéria foi publicada, Kruth se afastou do cargo, fato que não o impediu de perder o título de MS. Mas o ex-presidente da GuildSomm não foi o único a perder cargo e título.

Pressionado por todos os lados, o presidente da CMS-A, Devon Broglie (na foto acima) renunciou ao cargo. Os onze acusados de assédio foram suspensos e poderão perder os títulos de MS, um dos mais difíceis de conseguir no mundo do vinho. Além disso, há enorme pressão dos membros da organização para que todo o conselho renuncie, o que deve ocorrer em breve, e eleições sejam convocadas para eleger os novos membros. A intenção é revitalizar a imagem da organização, que tem 170 membros e sede no Napa Valley, fortemente abalada com todos os eventos contrários revelados nos últimos tempos.  

 

No comunicado que fez após se afastar do cargo, Broglie escreveu: "Peço desculpas profundamente a todas as mulheres cujas vidas e carreiras foram impactadas negativamente pelas ações predatórias de qualquer Mestre Sommelier. Esforcei-me ao máximo para mudar o curso da organização, reconheço que meu esforço foi insuficiente". No entanto, o próprio Broglie foi acusado em reportagem no NYT por uma ex-aluna do exame de Master Sommelier por comportamento sexual inapropriado.

No meio do fogo cruzado, a então vice-presidente Virginia Philip (na foto acima) assumiu o comando da organização e prometeu mudanças rápidas. "Concordamos que uma nova CMS-A é o único caminho para garantir a existência e integridade da organização e para melhor proteger as pessoas que buscam ser educadas e ganhar as credenciais pelas quais todos trabalhamos tanto", escreveu Virginia em uma carta enviada sexta-feira a todos os Master Sommeliers.

 

Mal a matéria foi publicada, as mulheres que fazem parte da comunidade de MS nos Estados Unidos se manifestaram fortemente. As 27 mulheres que possuem o título escreveram uma carta conjunta exigindo mudanças na organização, incluindo a renúncia de todo o conselho seguida por novas eleições para escolher os novos membros, revisão do estatuto e do código de ética da CMS-A e um compromisso público por maior transparência dentro da associação.

 

 

Via Instagram, a MS Jill Zimorski escreveu: "Não há lugar para o mal que foi feito a essas mulheres e, portanto, a tantas outras que foram feridas, intimidadas, abusadas, excluídas ou levadas a sentir qualquer coisa além de serem bem-vindas". "Este é um começo. Um sincero pedido de desculpas e uma promessa de mudar, reorganizar, reconstruir. Ah, e limpar a casa", concluiu.

 

Três mulheres renunciaram ao título de MS e publicaram duras críticas à organização. "Existem aqueles dentro [da Corte], mulheres e homens genuínos que estão trabalhando para transformar a partir de dentro, mas para mim, acredito que este é um momento para dar um passo para trás, introspecção crítica e uma reavaliação de como posso ser uma força positiva para o bem e incentivar o progresso do setor no futuro", escreveu a MS Pascaline Lepeltier, no Instagram.

Alpana Singh (na foto acima), a primeira mulher negra a se tornar uma Master Sommelier nos EUA, foi dura nas críticas ao CMS-A. “As questões sistêmicas de racismo, sexismo, classismo, homofobia e elitismo estão embutidas no DNA desta organização e nada de bom pode ser reconstruído desde sua fundação. Ela deve ser desmontada e devemos começar novamente”, escreveu Alpana.

 

Até domingo, cerca de 1.100 mulheres e homens em vários estágios de treinamento e certificação - incluindo pelo menos 18 Master Sommeliers - assinaram uma petição da Change.org pedindo um boicote aos cursos e exames futuros da CMS-A até que todo o conselho renunciasse. A petição citou não apenas as alegações de assédio sexual, mas também a maneira como o conselho lidou com um escândalo de fraude em exames de 2018 e o que descreveu como "falha em expressar apoio inequívoco" à comunidade BIPOC no início deste ano.

 

Com o próprio futuro em jogo, o fato é que a CMS-A precisa de mais do que uma sacudidela para levantar-se do lixo em que parece enfiada. Como bem disse o MS Jeremy Shanker, “a única chance de sobrevivência da organização como entidade legítima e confiável é um renascimento completo. Não pode mais ser uma associação que vigia a si mesma”. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.