"Se não tem peixe bom, nem abro o restaurante"

Estivemos no Chez Wong, em Lima, onde o chef Javier Wong faz o que é considerado o melhor ceviche do mundo

Fotografia: DR
Bruno Agostini

Bruno Agostini

Tínhamos uma reserva para almoço no restaurante Chez Wong, em Lima, para uma terça-feira. Porém, ela foi cancelada, pela manhã, no próprio dia: “Não tem peixe”, justificaram. Estranhamos, mas aceitamos ir no dia seguinte, reorganizando a agenda de viagem. Chegamos um pouco antes do horário marcado, 14h. Não havia o que fazer, as redondezas não são das mais amigáveis: Santa Catalina é um bairro distante do Centro da capital peruana, nada turístico, e tem fama de violento. Pedimos para esperar lá dentro, e assim o fizemos.

 

Exatamente às 13h56 o chef surge no salão, cujas paredes são repletas de diplomas, recortes de reportagens em jornais e revistas, além de fotos com celebridades, como o Anthony Bourdain. Em seu país, Javier Wong também é uma figura pública, e atua como embaixador da marca Perú, promovendo a gastronomia local no exterior. Em sua larga lista de clientes famosos, estão nomes como Bill Clinton. Há quem diga que a fama é exagerada, outros sustentam que ele faz o melhor ceviche do mundo – estou neste segundo grupo.

 

Metade do roteiro do almoço ali é conhecido: o ceviche de linguado é sempre o primeiro prato. O que vem depois depende da feira do dia e do humor do chef, mas é sempre um preparo salteado na wok surrada, com mais de 30 anos de uso. Assim, ele serve em sua casa o prato mais emblemático de sua terra natal seguido de outro que traz à tona as suas raízes chinesas: seu pai é de origem cantonesa, e a mãe, peruana.

 

Javier chega no salão, troca umas palavras com seu cozinheiro assistente e vai para a bancada, onde começa a filetear o linguado, que obrigatoriamente deve ter sido pescado naquela madrugada, e deve ter um tamanho razoável. Ele não aceita os que estão fora desse padrão, e foi por isso que nossa reserva foi cancelada no dia anterior. “Ontem não tinha linguado bom”, fez questão de dizer.

 

Em um processo quase coreografado, ele vai limpando o peixe, enquanto os clientes invariavelmente filmam e fotografam com o celular. Javier Wong vai cortando os linguados em cubos grandes, que na hora de serem servidos são rapidamente marinados em suco de limão, cebola roxa e pimenta, além de sal marinho. A travessa chega à mesa, ainda, com pote de pimentas coloridas, realmente picantes.

 

Enquanto a gente saboreava o ceviche que exalta a simplicidade, ele vai para a cozinha, onde prepara o prato principal, à vista dos comensais. É sempre uma receita da culinária chamada chifa, que é a variação de origem chinesa da gastronomia peruana. Além do linguado, sua wok recebeu naquela tarde quente de abril cogumelos e pimentões, vermelhos e amarelos, além de miniervilhas tortas, tudo lambuzado no tempero agridoce e ligeiramente apimentado que caracteriza a cozinha chinesa.

 

No final, ele veio conversar conosco: eu, o chef peruano Marco Espinoza e o fotógrafo carioca Tomás Rangel.

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O que é o ceviche para você?

É a simplicidade bem-feita. Eu só uso linguado do Pacífico, pescado durante a noite, que eu busco de manhã cedo. Se não tem peixe bom, cancelo as reservas, e nem abro o restaurante, isso é inegociável.  O peixe, do momento da pesca até o local de venda, não deve passar de quatro horas. Isso é importante, em termos de sabor e textura. Mas, é preciso muito cuidado no processo também: a cebola deve ser cortada na hora do preparo, por exemplo, e o limão deve ser pequeno, muito ácido e amargo, desses que são impossíveis provar puro.

 

Que outros cuidados devemos ter?

O mais importante é a origem do pescado. Assim que tiramos o peixe do mar ele já começa a se deteriorar. Fico muito preocupado com as mudanças climáticas. As águas do mar estão muito quentes, sobretudo com fenômenos como La Niña, porque já estamos há quatro anos batendo recordes de calor, o que é péssimo para a agricultura, e para a pesca, em breve não vamos ter peixes de qualidade: 27 graus, um absurdo, eu preciso de águas geladas para trabalhar, para ter bom peixe. Os pescados daqui são de água fria, esse é um problema grave e que me deixa muito preocupado. Fora a poluição dos mares.

 

Porque só usa o linguado, tendo tantos peixes na costa do Peru?

É o melhor. Tem uma carne delicada, com boa quantidade de gordura, e absorve bem os sabores que colocamos. Tem uma textura muito agradável, mantendo certa rigidez. Não há razão para eu usar outros. Quanto maior o linguado, mais rico e saboroso ele é, e eu só trabalho com os grandes, de até 18 quilos. Mas, hoje, temos muito pouco linguado disponível. E cada vez menos. Sobretudo os grandes.

 

O que o senhor pensa dos complementos geralmente utilizados no ceviche, como camote (um tipo de batata-doce alaranjada), milho, coentro etc?

Sou inimigo disso, são tipos de farinha, amidos e carboidratos, glúten, coisas que não fazem bem à saúde, que engordam as pessoas. Trazem muitos males para o corpo, causam obesidade mórbida, são um convite às doenças, ao diabetes. Eu não como arroz, e nem batatas mais do que uma vez por semana. Ninguém deveria comer. Além de tudo, muito tempero serve para mascarar peixe ruim.

 

Como nasceu o restaurante?

Cozinha é cultura. Eu me tornei cozinheiro, autodidata, fazendo uma culinária híbrida, sino-peruana. Comecei a abrir minha casa, para receber as pessoas,  e estou aqui neste local desde 1994. Escolhi de propósito. Como não é uma área turística, a pessoa vem só para comer, e eu gosto que seja assim. Ninguém entra aqui por acaso.

 

Já visitou o Brasil?

É o único país da América do Sul que não visitei. O chef Claude Troisgros veio me visitar aqui, com uma equipe de TV, e ficou comigo por três dias. Que sujeito simpático. Já me convidaram para abrir um restaurante no Brasil, em São Paulo, mas achei tudo muito caro, e preferi não ir. Inclusive, uma cadeia de restaurantes japoneses, bem grande, me convidou para ir trabalhar com eles no Brasil. Não posso abrir outro restaurante, nem fazer trabalhos do tipo. Só posso ter uma casa, tenho convicção disso, porque eu cuido de tudo, da compra dos ingredientes ao preparo, e recebo poucas pessoas por dia, vocês viram. Não imagino fazer de outra maneira. Quando vou cozinhar fora, por exemplo, eu não abro a casa, e ainda levo a minha wok e o fogão, que já tenho há 30 anos, e que tem uma chama muito forte, o que é essencial para os salteados.  É como se fosse um vulcão.

Que restaurantes gosta de frequentar?

Qualquer um, isso não me importa, eu como de tudo, sou onívoro. Mas, não saio para comer ceviche.