Pandemia força setor de gastronomia a investir no delivery e a valorizar as embalagens – de olho na experiência do consumidor
Foi como uma avalanche. Com a pandemia, subitamente, bares e restaurantes tiveram que abaixar as portas. Do outro lado, a primeira reação dos consumidores foi pegar nas panelas. Segundo pesquisa do Instituto Qualibest, em parceria com a consultoria Galunion, 93% dos entrevistados revelaram, logo na primeira semana de abril, estarem cozinhando e preparando comida em casa.
Quase sem receitas, o setor de gastronomia e food service precisou reinventar-se. De uma hora para outra, restou investir em delivery e takeaway. Afinal, sem a chance do contato humano com o cliente, foi preciso criar maneiras de ressignificar a qualidade do serviço. Essa drástica mudança fez a embalagem virar um item crítico. Saíram as quentinhas tradicionais, entraram as embalagens singulares.
“Muitos restaurantes foram à luta e desenvolveram soluções que permitiram a continuidade de seus negócios. Em estabelecimentos que têm um público mais sofisticado e exigente, a marmitex está dando lugar a embalagens impressas, bonitas e coloridas", ensina o professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Fabio Mestriner.
Um exemplo é o Grupo Gastronomia MF, que controla marcas como os premiados Kinoshita e o Attimo Per Quattro, ambas em São Paulo. "Nossa especialidade é o acolhimento, a hospitalidade, o ambiente. Com advento da pandemia ficamos altamente impactados. Tivemos de rever repensar nossos conceitos", reconhece o restauranteur Marcelo Fernandes (ver box).
"Nascemos como restaurantes, não como delivery. É um novo negócio dentro do negócio. Foi preciso criar alternativas. Descobrir como levar ao lar essa experiência para as pessoas perceberem que têm amor, dedicação e, principalmente, conceito", emenda o empresário que também comanda casas como Mercearia do Francês, Clos de Tapas, Kurâ Izakaya, Panetteria Attimino e Hamburgueria Tradi.
Em cada uma das casas, diz ele, os chefs participaram do processo de escolha. "Desenvolvemos embalagens e valorizamos muito os ingredientes para que eles possam chegar com seu melhor frescor e com melhor cocção.” "Fizemos teste, fizemos experiências. Foi muito difícil de conseguir encontrar material. A demanda era muito alta. Foi uma correria que a gente teve para qualificar, para poder trazer a característica que fosse necessária. Tivemos que fazer adaptações e cada chef elegeu o que poderia ser melhor."
No Attimo, por exemplo, alguns embrulhos têm papel com microfuros, que permitem reter o calor e a saída do vapor para que o alimento não murche. Já a Mercearia do Francês investiu em embalagens sustentáveis, que, segundo ele, vêm recebendo novos usos na casa dos clientes.
Um dos destaques é o Kinoshita, aclamada referência de gastronomia japonesa que acumula seis Michelin. "Comecei, com a equipe, a desenvolver um treinamento, contratando profissionais qualificados com esse potencial. Descobrimos que podíamos fazer algo diferenciado, que pudesse viajar à casa do cliente e chegar de forma privilegiada", explica Fernandes. O resultado é o Obentô USfoodExperience (ver box).
Outro projeto lançado durante a pandemia é do Troisgros Brasil. Criado em maio, o restaurante Do Batista surgiu no delivery antes mesmo de ter um endereço físico. O cardápio do conhecidíssimo braço-direito do chef Claude Troisgros inclui pratos tipicamente brasileiros como feijoada e galinhada com angu.
ADAPTAÇÕES
No Grupo Fasano, a curva de aprendizado já tinha começado antes da pandemia. "Tivemos o benefício de já possuir certa expertise em delivery devido ao Gero Panini", avalia a diretora de Alimentos e Bebidas, Mayra Chinellato, citando a marca dedicada aos sanduíches. "Mas foi necessário adequar procedimentos para os deliveries do Gero", admite.
As adaptações tinham dois objetivos: evitar que o paladar e a experiência fossem afetados. "Alguns deles mudamos para que pudessem 'viajar bem' e chegar com a apresentação, sabor e textura ideais na casa das pessoas.”
No Gero, o papel que envolve os pratos é revestido e a embalagem, com tamanhos adequados para os pratos, conta com uma selagem por calor para preservar a temperatura do alimento.
A quarentena ampliou em 50% a procura no Gero Panini. "O resultado superou nossas expectativas. Somos novos no delivery – começamos no ano passado com o Gero Panini – e estamos aprendendo a cada dia. Nós nos preocupamos muito com a experiência do cliente como um todo", diz ela.
IDENTIDADE VISUAL
A experiência do Mocotó com o delivery vem de 2018. O início, no entanto, foi desafiador. Estimulado pelo Ifood, ainda em 2018, o Mocotó precisou superar desafios comerciais e operacionais. "Descobrimos que o delivery é quase outro negócio", observa o chef Rodrigo de Oliveira. "Claro que a expertise da cozinha ajuda, que o pós-venda ajuda. Mas é outro jogo. Precisamos pensar em um menu para este formato, na embalagem. A logística é uma peça tremenda, fundamental, em especial o motoboy. Aliás, o motoboy é a peça mais importante", observa.
Um dos desafios era o de conservar a temperatura. Encontrou a solução em um fornecedor de Guarulhos. "Nossos produtos são produzidos com mais de 95% de papéis biodegradáveis", destaca Luiz Antônio Silveira, CEO da Scuadra Embalagens, empresa que também atende o Kinoshita e o Fasano, entre dezenas dos restaurantes mais festejados de São Paulo.
A pandemia, segundo ele, multiplicou a produção -- de 400.000 embalagens/mês (2º trimestre de 2019) para uma média de 1.500.000 embalagens/mês no mesmo período de 2020. A procura foi tanta que o fornecedor precisou suspender as vendas para novos clientes. O futuro é promissor, acredita o CEO da Scuadra. “O delivery de comida só está começando no Brasil.”
Ter começado antes foi fundamental no caso do Mocotó. "Se não tivéssemos o delivery, teríamos recurso para sobreviver por três meses", revela Oliveira.
Além do sabor, um dos fatores que encantam os clientes é a identidade visual. As caixinhas trazem as ilustrações de Felipe Ehrenberg, símbolo do restaurante surgido na Vila Medeiros. "Nossos clientes amam. Sempre elogiam nas redes sociais, postando fotos e marcando a gente", comemora.
Uma cliente assídua do Mocotó é a professora de educação infantil Maria do Carmo Ferreira, de 60 anos, para quem a experiência se assemelha à de comer no restaurante. “Eu amo o fato de os escondidinhos chegarem num potinho de cerâmica. É a melhor surpresa, abrir a embalagem e se deparar com isso. É como se você recebesse um carinho a mais”, elogia.
SUSTENTABILIDADE
O crescimento quase exponencial dos serviços de delivery gera um novo ponto de atenção: o ambiental. Dede janeiro, ganhou força de lei na cidade de São Paulo a proibição do fornecimento de copos, pratos, talheres e outros tipos de plástico de uso único.
"Vai ter muita embalagem no planeta agora", alerta Tatiana Lanna, que lidera a área de Cloud Kitchen na Liv Up, start up surgida em 2016 no segmento de marmitas saudáveis.
"As embalagens baratas são as piores para o meio ambiente. Se você quiser uma que seja sustentável, vai tomar um pedaço grande do teu custo. É um ponto importante, mas a gente aceitou o desafio. A gente trabalha com embalagens sustentáveis”, ressalta Tatiana.
Na Liv Up, os talheres são de milho, o bowl das saladas é de papelão compostável e a tampa de é um plástico biodegradável. A cada mês, a empresa produz, comercializa e entrega mais de 400 mil refeições em cerca de 50 cidades. "O delivery vai continuar a crescer de forma estrondosa”, prevê.
Em Curitiba, as ações socioambientais fazem parte da identidade do Manu. Conhecido pelo menu-degustação, o restaurante de Manu Buffara abriu a janela, literalmente, para uma nova marca. No Manuzita, pratos e potes são feitos de materiais de reciclagem de cana e milho. Os talheres são de bambu. A tábua de queijo é de madeira reciclada. A textura dos pratos, visualmente, remete a produtos de cerâmica. Eles são bem resistentes para manuseio. Já a tábua de queijo é de madeira reciclada. Tudo isso embala criações mais descoladas. “São sempre três pratos ou três sanduiches, uma sobremesa, cookie, nossas castanhas", afirma. Entre as opções estão o que ela chamou de hot-polvo. "Em vez de salsicha, um tentáculo de polvo, com guacamole, sal e vinagrete de tomate."
Além da sustentabilidade, a comunicação é um ponto fundamental, defende o professor Mestriner. Segundo ele, o QR Code passou a ser obrigatório e as marcas devem usar as embalagens para dialogar com o consumidor, contendo mensagens que iniciem uma nova venda. “Se me permitirem um conselho, recorrerei ao que aprendi com Steve Jobs”, indica o especialista em Design & Inteligência. “Gosto sempre de citar uma frase lapidar que ele falou: ‘O ato de desembalar um produto é parte fundamental da experiência do consumidor’.
Kinoshita: marmita sofisticada
No Japão, bentô é basicamente uma marmita. No Kinoshita, a tradicional bandeja ganhou uma releitura sofisticada.
Diante da pandemia, o restauranteur Marcelo Fernandes aproveitou uma parceria com uma oportunidade: a criação de um produto novo campanha para o delivery. Delegou a missão ao chef Nishimura e convidou uma artista plástica para fechar o conceito. O resultado é surpreendente.
Em conversa com a Gula, Fernandes conta como surgiu o Obentô USfoodExperience.
“Nossa adesão ao serviço de delivery era pequena. Em busca de alternativas para reagir aos efeitos da pandemia, o Kinoshita foi buscar inspiração em serviços de hospitalidade aplicados direto ao lar. Uma delas foi a parceria firmada com o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), desenvolvendo um produto exclusivo para a campanha USfoodExperience. A principal ideia dessa campanha é convidar o público a conhecer mais sobre a cultura gastronômica norte-americana e seus produtos de excelência que podem ser consumidos também no Brasil”, explica.
“Criamos um Obentô diferenciado, em embalagem compartimentalizada. Nosso chef Nishimura foi o responsável pela seleção dos produtos, criação e apresentação do cardápio exclusivo, inspirado no nosso Omakassê. Ele encanta pela sua embalagem, seu sabor sofisticado e sua apresentação primorosa”, afirma Fernandes
“O design customizado é da artista plástica Luciana Kitagawa. A embalagem conta com seis divisões compartimentadas, sendo uma destinada à sobremesa”, conta o empresário.
“São utilizadas iguarias como salmão selvagem Sockeye, enguia (Unagui), ovas de capelim (Massagô), ovas de salmão (Ikura) e black cod, também conhecido como Gindara do Alasca”, diz Fernandes.
“Percebemos a necessidade e nos adaptamos a esse serviço rapidamente. Fortalecemos nossa parceria com a plataforma Ifood, mas também preparando internamente nossa equipe na preparação de saída dos pedidos, com entregas para moto, carro ou bicicleta”, conclui.