30 anos fora da redoma

Fotografia: Ricardo Garrido
José João Santos

José João Santos

Contra a corrente, criando uma nova corrente. Com mais de 30 anos na empresa de família, Dirk Niepoort insiste na importância de regressar ao passado para aprender com os mais velhos e até se imagina um dia a fazer da atual redoma, a cozinha, atividade principal. Enquanto isso, Dirk nos garante que o projeto em que agora está empenhado passa pela elaboração de um Vinho Verde branco e descomplicado, cremoso e leve, à moda antiga, perspetivando que o dito seja bebido a médio prazo em Londres, Berlim ou Nova Iorque.

 

Ser dos personagens mais reconhecidos do mundo do vinho – claramente, o protagonista português com maior notoriedade individual em termos internacionais – tem prós e contras, como daquela vez em que numa das maiores feiras mundiais do setor quase não conseguiu chegar em tempo útil ao destino, tantas foram as abordagens durante o trajeto entre o stand de onde partira e… (como se diz em Portugal) a casa de banho.


Dirk Niepoort tem pinta de artista mas a formação foi numa área bem mais rigorosa, Economia. Estudou na Suíça, sem na altura imaginar que seria o vinho a tomar-lhe o pulso e a fazê-lo famoso. Hoje, ainda tem alguma dificuldade em lidar com tamanho protagonismo, tal a assiduidade das interpelações na rua, nos aeroportos, nos restaurantes – os do Porto ou os da China. Neste mundo global, Dirk não é apenas português. É do mundo.

Apesar do sobrenome Niepoort, enquanto elemento da quinta geração de uma família de origem holandesa com ligações ao Vinho do Porto desde 1842 garante nunca ter sentido pressão para dar continuidade ao negócio. Dos tempos de garoto recorda os momentos em que ajudava a decantar garrafas e a servir vinhos lá por casa, não mais que isso.


O clique deu-se em território helvético. Tinha duas opções para realizar o estágio de curso, um banco ou uma empresa de vinhos. “Até essa altura não era maluquinho por vinhos”, garante, mas a verdade é que optou pela empresa relacionada com o setor. Devorou o livro interno da firma e resolveu “gastar uma fortuna em vinho”, predispondo-se a despender 25€ na aquisição de uma garrafa de um vinho emblemático. Munido da quantia, dirigiu-se de peito feito a uma loja de vinhos, deparando-se com o valor da garrafa de Château Pétrus que momentos antes decidira adquirir: 750€. Procurou abdicar ligeiramente e espreitou Château D’ Yquem: 560€. “Muito agarrado ao dinheiro”, como admite, saiu pálido da loja e confessou à namorada da altura a incompreensão pelo facto de haver vinhos a tais valores.


Derrotado mas não convencido, começou a voluntariar-se para trabalhar em eventos e provas de vinhos. Não queria que lhe pagassem em dinheiro, mas que no final o presenteassem com um vinho que fosse realmente bom. Na primeira vez teve oportunidade de provar Pétrus (Bordeaux), depois um Guigal (Rhône) e, pronto, o caminho começava a ficar traçado, até porque se seguiria um novo estágio, dessa vez na Califórnia, igualmente relacionado com vinhos.

 

Em nenhum momento Dirk Niepoort sentiu a necessidade ou o apelo de estudar viticultura ou enologia. Autodidata confesso, assegura que não comete erros graves na adega e não tem problema em admitir que na própria empresa tem pessoas que tecnicamente sabem mais de vinho do que ele. Todavia, considera que se tivesse estudado alguma dessas áreas sentir-se-ia mais limitado. “Tenho uma abertura relativamente ao vinho e até à gestão da empresa muito diferente. Como não me disseram que só poderia fazer desta ou daquela forma, escolho os meus próprios limites. Isso dá-me uma facilidade de conhecer produtores e de conhecer vinhos, depois sonhar e adaptar essas formas de fazer ao nosso mundo e criar algo bem diferente. Costumo dizer, na brincadeira, que fazemos tudo mal na vinificação mas que o resultado final até é bem bom, é jeitoso”.

 

O “monstro” e o Verde branco

Em 1986, à saída da Califórnia, Dirk foi questionado acerca do vinho que iria passar a fazer no Douro. Seria certamente Vinho do Porto, seria a médio prazo também um vinho tinto e o primeiro deles, muito provavelmente, seria “um monstro”. Mas de imediato antecipara a expetativa de conseguir vinhos “mais finos” a longo prazo. Hoje, sublinha que o tal “monstro”, o Robustus 1990, começou por ser bastante encorpado mas que agora está no ponto, não esquecendo as primeiras edições dos Redoma, bem mais rústicas que as mais recentes, ou até do Batuta 1999, “vinho com bastante músculo”. Aos que por vezes o acusam de mudar frequentemente de estilo, Dirk encaixa a observação mas contrapõe: “Os vinhos estão cada vez melhores, mais afinados, mais precisos. Continuam na mesma linha, estão apenas mais afinados”. Esses vinhos, menos pesados e com a madeira menos presente, nascem das ideias que Dirk vai tendo ao longo destes 30 anos de ligação efetiva à empresa familiar. Recusa ser seguidista ou embarcar em modas, confessando inspirar-se naqueles que alcançam grandes vinhos sem abdicar do caminho próprio.


Ora, o caminho de Dirk é projetado há 20 anos. Apesar de irrequieto, desde cedo começou a perceber que um dos segredos do vinho é o de saber esperar e porque também não gosta de sentir-se pressionado para o que quer que seja, esperar passou a ser das virtudes que mais advoga. Ir além do óbvio é algo que lhe dá especial gozo, pelo que a visão que tem do Douro é muito particular.


Esteve na gênese dos Douro Boys (Niepoort, Quinta do Crasto, Quinta Vale D. Maria, Quinta do Vale Meão, Quinta do Vallado), um modelo que rompeu com a ideia isolacionista de cada produtor per si. Juntos, uma mão cheia de produtores que partilham vários princípios passaram a promover-se sobretudo em mercados internacionais, muitas vezes com um único produtor a apresentar os vinhos próprios e os dos congéneres. Economia de esforços, multiplicação de resultados. A ideia foi um sucesso na imprensa internacional e na atualidade continua a ser replicada por outros produtores, incluindo de outras regiões portuguesas. A partilha é algo que Dirk aprecia particularmente, a ponto de convidar outros produtores e enólogos do Douro a irem até à Quinta de Nápoles quando é ele quem recebe influentes jornalistas internacionais. E mais do que falarem dos vinhos que cada um elabora, apela a que todos tragam vinhos de terceiros, muitos dos quais estrangeiros, de modo a conseguirem ter temas suplementares de conversa e a obterem outras impressões acerca de vinhos que desconhecem. “É a partilhar que aprendemos”, acredita.


E porque o mundo está em constante mudança, não se espere que o perfil dos vinhos de Dirk Niepoort seja uma linha reta. Os Batuta, Bioma, Charme, Coche, Dócil, Redoma, Robustus, Turris e Vertente também se alteram, não apenas porque uma determinada colheita a isso obrigou mas, sobretudo, porque quem os cria assim quis. “O Charme era muito estranho para alguns colegas, mas neste momento vejo que muitos estão a tentar fazer Charme. É positivo, é bom para a região. Tal como o Priorat (Catalunha, Espanha), o Douro estava a seguir um caminho errado, com vinhos muitos pesados e extraídos, a prometer ao mundo que iam envelhecer. Dez anos depois começamos a ver que não é assim, que talvez fosse melhor vinhos mais finos, mais precisos, menos alcoólicos, com mais acidez e menos madeira. Vejam o Alvaro Palacios. Fazia vinhos monumentais, que nunca gostei muito. Mudou o perfil e agora está a fazer vinhos fantásticos. Mas teve a coragem de mudar! O mundo está a mudar. Hoje, um grande vinho tem que ser um vinho equilibrado, fino, que envelheça bem”, observa.

 

Essa mudança de perfil, que os mais atentos vão detectando com alguma facilidade nos recentes lançamentos de boa parte dos DOC Douro de maior nomeada, corresponde a uma tendência internacional, que passou a olhar com outros olhos os vinhos mais elegantes e sutis em detrimentos dos portentos de fruta, taninos e madeira. Dirk, no entanto, nota que a crítica continua a não o perceber: “Acho que os jornalistas estão muito enganados. Vão muito pelo grande vinho, não tanto pelo que dá gozo beber. Dizem que gostam de vinhos finos mas atribuem as pontuações mais elevadas aos vinhos pesados e alcoólicos. Há uma fantochada muito grande. Mas é o que é, é normal”.

 

Olha para o Douro e vê muitos Douros num só. Diz, sem pejo, que as melhoras uvas para Vinho do Porto são as piores para DOC, por serem mais excessivas e terem menor acidez natural. Indica que as vinhas velhas são um patrimônio a preservar, que exige compreensão constante, salientando que se trabalha numa região com 85 castas autóctones, onde jogar com vinhas de diferentes altitudes poderá ser a chave do sucesso do equilíbrio e onde variedades aparentemente mais inconstantes, como a Tinta Amarela (a Trincadeira do Douro, sensível à podridão mas capaz de conferir longevidade), poderão estar na base de vinhos bem conseguidos.

 

Depois do Douro, nos últimos anos a Niepoort chegou à Bairrada, ao Dão e aos Vinhos Verdes. Neste último caso, um Vinho Verde branco, à moda antiga, inspirado na tradição taberneira, com cremosidade e baixo álcool. Dirk o vê a ser bebido em restaurantes de Londres, de Berlim ou mesmo de Nova Iorque, com a tradicional malga, dando novos mundos à tradição que muitos velhos inauguraram.


Os armazéns de Gaia

Vetusto é o cenário onde está adormecido o outro património da Niepoort. Nos armazéns de Vila Nova de Gaia, onde as condições de umidade e as temperaturas mais amenas continuam a embalar muito Vinho do Porto, há tonéis, balseiros, garrafas e, claro, os demijohn, também conhecidos por bonbonne, que já se tornaram imagem de marca da casa.

 

Os recipientes de vidro com capacidade para cinco litros, como se de um garrafão mais achatado estivéssemos a falar, foram adquiridos em segunda mão no Norte da Alemanha e terão tido como primeira finalidade a preservação de produtos farmacêuticos. Mais que centenários, estes sensíveis depósitos de vinho albergam quase sempre os famosos Garrafeira, vinhos do Porto que envelhecem três a cinco anos em pipa antes de ali chegarem. Volvidos 20 a 30 anos, normalmente os vinhos são decantados para garrafas convencionais, repousando mais uns três anos para recuperarem do movimento e do contato com o oxigênio que tiveram durante o processo. “Pomposamente, gosto de dizer que os Garrafeira são os Romanée Conti do Vinho do Porto”. Dirk explica a analogia, salientando a frescura, a fineza, a cor brilhante e aberta que possuem.


Seja na garrafeira ou no armazém contíguo, a atmosfera deste lugar é incrível. Por momentos parecemos protagonistas de um filme de época, tal a “patine” com que nos deparamos. As paredes transpiram rusticidade, a luz ténue guia-nos pelo essencial de cada corredor, as pipas com que nos deparamos aparentam ter as dezenas e dezenas de anos que certamente terão, as inscrições da maioria das garrafas apenas é vislumbrada a dois palmos dos olhos, a sala de provas onde ainda hoje Dirk faz os lotes de Portos provoca inveja ao mais rigoroso dos cenógrafos. “Isto é tempo, é história. É um valor que só vale se lhe dermos valor. O tempo é a chave de tudo”, enfatiza.


A redoma da cozinha

A par do vinho, Dirk Niepoort tem na cozinha a outra grande paixão. Por ser “muito agarrado”, apesar de os pais lhe darem dinheiro suficiente para viver sem problemas enquanto estudava na Suíça, o custo de vida elevado naquele país fê-lo querer cozinhar para não gastar dinheiro – “A ponto de haver restaurantes que não me deixavam entrar porque nunca pedia nada, apenas um copo de água, e ia provando dos pratos dos outros”. Certo dia telefonou à mãe e perguntou-lhe como se faziam bolinhos de bacalhau. A partir daí despertou o gosto pela cozinha, embora sem seguir à risca uma receita porque o que dá prazer é criar, consoante o que vai comprando ou o que o frigorífico lhe oferece quando chega a casa. Isto, claro, sem nunca esquecer os vinhos que vai provar à refeição e é quase sempre em função deles que cozinha. “Outra coisa muito bonita é quando cozinho com a minha mulher. Não precisamos falar muito e de repente um prato feito por ela combina muito bem com um prato meu. Vamos fazendo, vamos improvisando. Cozinhar é talvez a coisa que mais gosto de fazer”, confessa.


A cozinha é igualmente terapêutica para Dirk. Se para muitos dos que gostam de cozinhar significa escape ou evasão de pensamentos, para este protagonista é como se de uma verdadeira redoma (não o vinho) se tratasse. Ao contrário do que possamos pensar, pela forma como fala ou tantas vezes se expõe, Dirk prefere o isolamento à confusão. Num jantar de vinhos opta por circular de mesa em mesa porque não gosta de estar a falar constantemente com os mesmos e, assim, é mais fácil sair quando quiser. Em casa, no Porto, prefere ser ele a cozinhar porque não tem que ficar tão perto das pessoas, está por momentos sozinho, no mundo dele. Quando quer, regressa à sala; quando quer, volta para a cozinha. É um pretexto para não ter que ficar sentado. “Sofro muito se estiver com muita gente. Por isso, tenho que arranjar maneira de fugir”.

 

Mais tarde ou mais cedo, acredita que terá algo parecido com um restaurante. Nada com pretensiosismos ou aspirações ao estrelato. Apenas muito improviso, inspiração na boa tradição gastronómica portuguesa e uma carta de vinhos à maneira do “chef” Dirk.

 

No Brasil, Dirk está de casa nova. Depois de anos na Mistral, o produtor agora é representado pela Grand Cru. Em apresentação via zoom para a imprensa e profissionais do setor, o produtor e o staff da importadora detalharam alguns planos sobre o casamento. Em um primeiro momento, chegam alguns rótulos do Douro, Minho e Dão. Os espetaculares vinhos da Bairrada estão previstos para chegarem em 2021. E muito mais há por vir, garantem as partes. 

 

E nesta nova parceria, uma promessa já foi feita: assim que a pandemia passar e Niepoort puder vir ao país, não apenas apresentará os vinhos, mas também vai comprovar os dotes culinários em jantares especiais preparados pelo novo "chef". E - dica de quem já teve o privilégio de partilhar algumas das criações culinárias do produtor - os brasileiros não perdem por esperar. Quem precisa de estrelas Michelin quando um ser estrelado como Dirk Niepoort cozinha para nós?

 

Clique aqui e confira os vinhos de Dirk Niepoort trazidos pela Grand Cru:

 

Nós provamos, em primeira mão, cinco dos rótulos do produtor trazidos pela importadora:

Niepoort Conversa Tinto 2018

A ideia neste vinho é entregar um vinho leve, divertido, que acompanhe um bom jantar ou mesmo um papo animado. E Dirk cumpre o que promete. É um tinto alegre, fresco, fácil. Fruta franca, corpo leve a médio, acidez precisa. Para beber de golão - 88

 

Niepoort Dão Tinto 2016

O Dão é uma das grandes regiões para se fazer vinhos no mundo. Infelizmente, ainda não possui o reconhecimento devido. Com vinhos como esse, fica mais fácil chegar lá. Tem fruta fresca, um lado floral bastante marcado. Muito fresco, fino, delicado. É multidimensional, profundo e longo - 91

 

Niepoort Vertente Tinto 2016

Irmão mais modesto do Batuta, o Vertente tem uma linhha bem definifda: fruta bem marcada, um leve toque da madeira, boa dimensão em boca, algum volume e uma acidez precisa que amarra o conjunto. É um vinho sem grandes ousadias e nenhuma aresta, porto seguro para quem busca um niepoort mais consensual - 89

 

Niepoort Conciso Tinto 2015

O encanto começa no nariz, cheio de bergamota, cereja ácida. Na boca, prima pela delicadeza e elegância, com taninos bem finos, profundidade, frescor. Um tinto que mostra a sensacional região que o Dão é - 94

 

Niepoort Redoma Tinto 2017

Talvez a palavra que melhor defina o Redoma seja precisão. No nariz, a conjunção da fruta com o lado terroso e o xisto duriense. Na boca, a harmonia entre os taninos macios, a força do Douro e uma acidez que a colheita mais precoce garante. Um vinho que dita tendências e mostra um perfil que cada vez mais representa a região - 95