A cerveja de todas as cervejas

Fotografia: Divulgação
Miguel Icassatti

Miguel Icassatti

Se eu ou você, cara leitora e caro leitor, tivéssemos de escolher uma única cerveja para beber uma vez na (ou ao longo da) vida, esta cerveja seria a Pilsner Urquell. Para confirmar esta minha certeza, vamos, primeiro, tomar alguns goles de história, viajando ao mosteiro beneditino Brevnov, nos arredores de Praga. Foi ali, em 993, que se deu notícia à primeira brassagem de uma cerveja no território correspondente ao da atual República Tcheca. Pelos quatro ou cinco séculos seguintes, os cidadãos tchecos conviveram com idas e vindas em relação ao direito de produzir cerveja. No ano de 1300, por exemplo, o Rei Venceslau II estabeleceu que apenas os cidadãos residentes em cidades sob sua égide e os mosteiros tinham o direito de preparar a cerveja. Já em 1356, o Rei Carlos IV reconheceu o direito a todo cidadão local de preparar cerveja. Com isso, a produção e o consumo se disseminaram na região.

É provável, porém, que toda essa cerveja tivesse um aspecto turvo e escuro, semelhante ao de algumas do tipo Ale (de alta fermentação), mas com um paladar quase insípido. Até que em meados do século XIV surgiu na Baviera (no sul da atual Alemanha) a cerveja do tipo Lager, de baixa fermentação, de cor clara, e com paladar e aromas mais refrescantes. Esse estilo de cerveja logo caiu no gosto popular em uma Europa que deixava a idade Média para trás e se abria para novas e grandes descobertas e relações comerciais. A produção de cerveja cresceu pelos séculos seguintes ao passo que a qualidade do líquido, ao menos na República Tcheca, caiu. Até que, em 1838, um grupo de cidadãos locais da cidade de Plzen despejou 36 barris de cerveja em praça pública, em protesto contra a qualidade de cerveja que lhes era vendida. Em consequência disso, começou a surgir ali uma nova cervejaria, capaz de produzir uma bebida de baixa fermentação e de alta qualidade, baseada em conceitos que, na época, eram os mais avançados do mundo: a fábrica foi construída em um local com suprimento perene de água doce, proveniente de poços artesianos profundos; além da água pura, a receita da cerveja considerava os melhores ingredientes locais: cevada da Morávia, lúpulo Saaz de Žatec e fermento de baixa fermentação da Baviera. O primeiro lote dessa cerveja dourada seria apresentado pelo jovem mestre-cervejeiro bávaro Josef Groll na Feira de Martinmas, na própria cidade de Plzeň, no dia 11 de novembro de 1842. Com uma cor dourada brilhante e espuma branca abundante, surgia a primeira cerveja Lager verdadeiramente pálida e límpida. Essa cerveja era a Pilsner Urquell.

Agora sim: passados nove séculos até que os tchecos chegassem à receita da cerveja que vem sendo fabricada da mesma maneira por 182 anos, alcançando os dias atuais, Urquell é considerada a cerveja de todas as cervejas, a Pilsen de todas as Pilsens, estilo de cerveja que é o mais consumido no mundo. A cervejaria Urquell, aliás, é uma das últimas grandes empresas do setor que ainda fazem a maltagem – processo que auxilia as sementes de malte a produzir enzimas, que serão responsáveis pelo sabor, aroma, dulçor e cor dourada da cerveja. O lúpulo (ingrediente que atribui amargor à cerveja) é o do tipo Saaz, conhecido como “Ouro Verde”. E o fermento utilizado na Urquell é o Pilsner H, que foi domesticado (perdão pela falta de uma palavra mais adequada) pelo mestre-cervejeiro Joseph Groll lá no século 19 que, diante da dificuldade de padronizar a receita a partir de leveduras selvagens, descobriu o Pilsner H, que atribui limpidez, paladar final seco e frescor à bebida.

Localizada na cidade de Plzen, a 95 quilômetros de Praga, a sede da cervejaria é um lugar histórico e perfeito para a produção de uma cerveja como Urquell: a água da cidade de Plzen já chega aos seus tanques a 11 graus de temperatura – algo próximo a perfeição. O espaço, aberto a visitação recebe entusiastas do mundo inteiro, que podem percorrer lugares como o porão subterrâneo, 9 quilômetros de corredores e o espaço de tanoaria – onde os tonéis (de 25 a 4.000 litros) de madeira são fabricados.

Uma degustação de Urquell mostrará que a cerveja tem aparência amarelo-dourado, brilhante e filtrado, com espuma persistente, aroma equilibrado (dulçor do malte com um pouco de aroma resinoso do lúpulo); no paladar, o sabor predominante é o do lúpulo, com orpo baixo/médio, com amargor baixo. Para harmonizar, não é errado supor que Urquell combine com diversos alimentos: carne suína grelhada (lombo, por exemplo), queijo Brie e castanhas salgadas. Afinal, Urquell é a cerveja de todas as cervejas.
 

Voce sabia?

Cerca de 90% da produção na República Tcheca é representada pela cerveja clara tipo Pilsen.

Que a República Tcheca é o país com o maior consumo de cerveja por capita no mundo (155 litros por pessoa; o que dá quase 13 litros por mês ou 430 mililitros por dia.